quinta-feira, 3 de março de 2011

não foi acidente. problemas na sociedade não são "acidentais"

Já se vai quase uma semana desde que o funcionário público Ricardo José Neis atropelou deliberadamente um grupo de ciclistas que fazia uma manifestação pacífica pelas ruas de Porto Alegre. Muito se falou sobre o caso desde então, e todos dotados de um mínimo de bom senso devem estar aguardando uma punição exemplar ao "monstrorista" (*). Mas a questão que fica é se todos entendem de fato por que precisa haver justiça aqui.
A hashtag #naofoiacidente emplacou no Twitter há dias e deve ter convencido a muitos. Alguém jogar um automóvel em cima de uma pessoa não pode ser encaracdo como mero "acidente de trânsito", como se faz em estatísticas oficiais. São centenas de quilos de metal contra um frágil ser de carne e osso. O carro é uma arma em potencial. Sua condução exige responsabilidade.
O que vemos nas ruas, entretanto? Creio que todos têm uma história de horror no trânsito para contar, que tenham visto e presenciado - neste único post tenho duas - e não algo que tenha ocorrido certa vez na vida, mas nos últimos dias. Nas ruas se exercitam livre e impunemente o egocentrismo - eu tenho de passar, estou com pressa - , a egolatria - eu tenho de passar com meu carro/minha moto, especialmente se ele/a for grande e caro/a - e, como óbvia consequência, a intolerância com quem pode menos. E segundo essa lógica perversa, pode menos o pedestre, o carroceiro, podem menos os ciclistas que "invadem" o espaço que segundo o motorista perverso, é somente dos carros - ainda que o Código Nacional de Trânsito diga exatamente o contrário.
Então, estamos de acordo: não foi acidente. Mas vamos pensar um pouco mais. Pegue-se o Jornal Nacional de ontem - não recomendo esse noticíario, mas acabei pegando o comecinho dele na noite passada e veio até a calhar. Primeiro bloco: uma sequência de crimes hediondos que nem vale lembrar, principalmente pela forma sensacionalista e banalizada como são tratadas tais notícias. E em meio a esse balaio, o casal global deu as últimas sobre o caso de Porto Alegre. Como se fosse mais um escândalo midiático qualquer, como se Ricardo José Neis fosse mais um desses malucos cuja conduta não encontrasse similar em nossa sociedade. Como esses pais que matam os filhos, que a nossa imprensa adora.
Repetindo: todo mundo tem uma história de horror no trânsito para contar. Exigir justiça para o atropelador de Porto Alegre é bem diferente de, digamos, aparecer na frente do tribunal onde se julgou o caso Isabella e pedir a cabeça dos Nardoni, como se estivéssemos na Roma antiga. Falar de Ricardo José Neis é precedente para revermos conceitos enraizados em nossa sociedade. "Eu gosto do meu carro, gosto de andar rápido. Não admito que fiquem no meu caminho. Puxa, será que esse meu comportamento não põe em risco a vida dos outros? Será que, agindo dessa maneira egoísta, não poderia eu mesmo acabar causando algo parecido com o que aconteceu em Porto Alegre?"
O que Neis fez parece algo extraordinário, talvez devido à força das imagens, mas definitivamente não é algo descolado da realidade de nossas ruas. Não é um caso à parte, está inserido num contexto de desvalorização da vida humana mediante o autoproclamado domínio de quem se locomove guiando um veículo motorizado. Ricardo José Neis cometeu um crime e deve ser punido (**). Sua motivação foi um pensamento que tem aval da sociedade. Todos nós temos de aprender com esse erro, coma vantagem de que não precisaremos ir para a cadeia.




(*) Para quem achou o termo estranho, é uma mistura de monstro com motorista. Motorista-monstro.
(**) A punição que queremos deve se dar pelas vias da Justiça, não pelo justiciamento puro e simples que já marcou este caso similar, ocorrido esta semana. Aliás, rigores da lei para este outro monstro também!

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