quarta-feira, 9 de março de 2011

se não pode comprar, babe

Ao contrário de mim, meu pai é uma pessoa que gosta de carros. (Eu também gostava quando era adolescente, mas isso passou.) Aí, se a condição financeira permite, ele procura o melhor carro que seu dinheiro pode comprar, de acordo com seu gosto pessoal. Hoje, devo dizer, ele possui um automóvel que chama atenção. É um fato que constato, não ligo para carros e sou avesso a qualquer tipo de ostentação. As pessoas passam na rua e ficam olhando para a charanga do velho, quando ela está fora da garagem.
Moramos próximo a uma grande revendedora de automóveis. Alguns dos funcionários da loja deixam seus carros na rua durante o dia inteiro e vão trabalhar (aliás, é de uma alegria imensa para mim que uma loja de carro não providencie espaço em suas dependências e, em consequência disso, seus empregados abarrotem as ruas próximas). Bem, o que importa é que essas pessoas estão entre os admiradores do carro do papai. Admiradores? Uns só falta babarem mesmo. Mas claro: eles estão inseridos num meio em que tudo acontece em torno desse bem de consumo chamado automóvel. Eles o compram, vendem, revisam, consertam, manobram, estacionam, limpam, decoram, exibem. Tocam-no, sentem seu cheiro, amam o ruído de seu motor. Eles o desejam, especialmente os modelos mais caros, os tops de linha. Mas não podem tê-los, por mais que creiam o contrário. São apenas funcionários. Não ocupam cargos de chefia, condição em que, é quase certo, deixariam o carrão dentro da concessionária, numa vaga demarcada.
Mas desejar é diferente; não custa, ao menos em dinheiro. Ter e alimentar sonhos de consumo dentro e fora do trabalho. A coisa vai além de um simples gostar de carro. Eu me pergunto se em algum momento essas pessoas param e pensam sobre o que lhes acontece. Elas são agentes e objetos do processo de convencer a massa a comprar automóveis, não somente pela promessa de mobilidade própria - totalmente falsa, aliás, dadas as condições de nosso trânsito -, mas também pela sensação de poder ao alcance do bolso, ainda que o carro dos sonhos não seja - e raramente é - aquele que a conta bancária permite ter. Isso é, talvez, lá com os chefes e com um outro cliente exclusivo. Aos reles mortais, o sonho, a fantasia, a fuga da realidade. A baba.
Não, não deve sobrar tempo a esses trabalhadores para raciocinar sobre o que lhes passa, estão presos demais nessa grande ilusão. Meu trabalho acaba comigo, fico aqui o dia inteiro, sou explorado, mal pago, mas gosto demais de carro para realmente me importar com isso. E esse "amor" é fator decisivo que os faz fechar os olhos para esta realidade: a fim de que uns poucos possuam os veículos de sonhos, é preciso que uma massa tenha uma vida de pesadelo. E esses empregados nunca deixarão de ser massa. De manobra, inclusive. Pudessem escapar desse universo alienante, será que todos seriam tão apaixonados por automóveis assim? Não despertariam para interesses outros, para opiniões distintas sobre o mundo e o trabalho?

Nenhum comentário: