sexta-feira, 9 de outubro de 2015

uma revisão: crianças trabalhando

Anos atrás, escrevi um texto no qual eu manifestava minha indignação com o fato de existirem crianças obrigadas a trabalhar desde tão tenra idade. Atitude nobre de minha parte, certo? A questão é que eu direcionava a culpa dessa condição, exclusiva e inequivocamente, a pais e mães.
Hoje, sou capaz de encarar esse post como, vá lá, bem intencionado. Qual era meu ponto naquele momento? Eu evoquei minha infância feliz, as alegrias que vivi num mundo despreocupado, mágico. Em minha opinião, nenhuma criança deveria ser privada dessa felicidade que eu julgava inerente à "aurora da vida". Pais e mães deveriam dar um jeito e poupar sua prole da sofrida labuta para subsistir. A qualquer custo. Que deem um jeito. Ou, em minhas palavras de então: "Arranjem-se de outra maneira".
Ninguém em seu juízo perfeito deveria defender o trabalho infantil. Hoje em dia, no mundo ocidental, as crianças que trabalham o fazem em condições totalmente informais. Pensemos nos tempos da primeira Revolução Industrial, em que não havia distinção etária para o exercício de jornadas de trabalho que mal garantiam que as pessoas empregadas chegassem vivas ao dia seguinte - para continuarem trabalhando, sim. Há a escravidão invisível, há as crianças que costuram nossos tênis no leste da Ásia. Mas, formalmente, o Ocidente não tolera mais criança trabalhando.
Não se tolera mais criança trabalhando. As pessoas responsáveis pela criança que vende bala no ônibus, onde estão? Podem estar trabalhando também, em serviços muito mal pagos que exijam que a renda familiar seja complementada. Ou essas pessoas adultas simplesmente estão impedidas de trabalhar, por algum motivo. Quem sou eu para dizer que pais e mães estão simplesmente atirando crianças no duro mundo lá fora, sem a menor ciência das implicações desse ato? Sério que eu não sei que seria muito melhor se o meu filho tivesse tempo para estudar, para brincar? Se ele pudesse ter uma infância mágica?
Haja dedo para sair apontando a cada mãe e a cada pai Brasil afora por mutilar assim a vida de suas pobres crianças. Felizmente, não penso mais assim. E para onde poderia me levar essa visão incompleta, generalizante, sobre o que faz uma criança ser obrigada a se virar como gente grande para sobreviver? Talvez a um rancor, mesmo a ódio, por pessoas que eu sequer havia me esforçado para entender.
Esta reconsideração que faço, devo a uma empatia que aprendi a ter ao longo dos anos. Tentar pensar como o outro, colocar-se em seu lugar, investigar suas motivações. E a opinião mudou. Metamorfose ambulante, sabe? Interessante essa percepção de que podemos sempre aprimorar nossos julgamentos, enxergar situações com outros, novos olhos. E consequentemente, melhorar-nos. Não é maravilhosa a sensação de que podemos sempre nos superar, ser ainda melhores do que já somos?

domingo, 8 de fevereiro de 2015

por que ver o Jogo da Imitação

Estreou neste final de semana O Jogo da Imitação. Baseado em fatos reais, o filme é uma biografia do matemático inglês Alan Turing. Indicado a diversos Oscars, certamente despertará grande interesse. O Jogo da Imitação pode não ser perfeito, mas é indubitavelmente necessário, por vários motivos. Apresentarei alguns.
O filme tornará mais conhecida do grande público a história de Turing, pioneiro num campo de conhecimento extremamente árido, mas sem o qual o mundo atual seria inimaginável: a Ciência da Computação. Se hoje passamos boa parte de nosso tempo em frente a computadores, carregamo-nos em nossos bolsos e até dormimos ao lado deles, é em grande parte graças a gente visionária e “estranha” como Turing. (Guardem estas aspas, voltaremos a elas mais adiante.) E qual a finalidade original dos computadores? Certamente, não era permitir que postássemos selfies, nem mesmo rodar algum joguinho viciante. Mais de setenta anos atrás, países da Europa Ocidental como França e Inglaterra, o autointitulado “mundo livre”, enfrentavam a Alemanha nazista na maior guerra já vista neste mundo, e estavam levando uma tremenda sova. O que oferecia tamanha vantagem a Hitler? Uma indústria armamentista mais avançada? Isso não explica tudo.
Decisivo era o modo como o alto comando alemão comunicava ordens relativas à movimentação de seus veículos bélicos. Tais mensagens podiam ser facilmente interceptadas pelos Aliados, mas sua compreensão era impossível para quem não conhecesse Enigma, o código segundo o qual elas eram escritas. Criptografia. O filme nos mostra que seres humanos levariam 20 milhões de anos para analisar todas as trilhões de chaves possíveis para entender esse código. Alan Turing projetou uma máquina capaz de realizar as múltiplas operações necessárias em tempo hábil – a precursora de nossos computadores. A quebra de Enigma virou o jogo da guerra a favor dos Aliados. Tornava-se então possível se antecipar aos movimentos das forças nazistas, seja preparando medidas defensivas, seja planejando ataques que seriam decisivos para a vitória final. Mais que a grande mobilização de tropas motivadas, digamos, por um Capitão América, foi a informação que realmente definiu o resultado da Segunda Grande Guerra. Também não se concebem os dias atuais sem a presença da informação, rápida e precisa, nos mais diversos contextos. Ainda sobre a guerra, o filme ilustra bem o fato de que não se podia deixar a menor suspeita de que os Aliados haviam decifrado Enigma e que baseavam suas estratégias nesse grande trunfo. Era preciso fazer parecer, frente à Inteligência alemã, que o código agora revelado permanecia secreto. A informação foi fundamental para a guerra, pautada por algo que poderíamos definir como “segredismo”.
Retomemos aquelas aspas anteriores: vou tratar da personalidade do homem por trás dos grandes feitos até aqui expostos. A familiaridade fenomenal de Alan Turing com os números parecia inversamente proporcional às suas habilidades sociais. Ele era incapaz de compreender ironias, soava arrogante e cheio de si quando, na realidade, estava longe de sê-lo. Além desse traço de sociopatia inerente ao típico nerd, Alan, mestre em criptografia, guardava, ele mesmo, um segredo íntimo, cuja revelação involuntária custou-lhe a sanidade e, pouco depois, a própria vida. Nem os inestimáveis serviços prestados ao Reino Unido livraram Alan Turing de uma lei absurda, concebida num tempo ainda pior que o nosso em termos de efetivo respeito às diferenças. As pessoas que hoje destilam ódio a grupos minoritários e/ou historicamente oprimidos em redes sociais e páginas de grandes portais da Internet teriam muito a aprender com a história do gênio inventivo, excêntrico e homossexual, inventor do aparelho que utilizam para difundir seus absurdos. Aprenderiam, se assim o quisessem.
Por último, mas não menos importante, há que falar sobre o ator que encarna o protagonista deste filme. Benedict Cumberbatch é um dos melhores de sua geração. Eu o conheci interpretando outro gênio, este da ficção, Sherlock Holmes, na brilhante série da BBC. Desde então, recomendo tudo em que o nome deste artista esteja envolvido. Friso que não há repetição entre o matemático e o detetive de Baker Street trazidos por Cumberbatch: são papéis distintos, e maravilhosamente entregues. O resto do elenco está muito bem.
Tais são os méritos de O Jogo da Imitação: história bem contada; biografia de uma personalidade cujo trabalho foi fundamental para o mundo tal como o vivemos hoje; uma abordagem diferente sobre o recorrente tema da guerra; a presença do fantástico Benedict Cumberbatch; e até a possibilidade de sair da sala de projeção um pouco melhores do que entramos.