quinta-feira, 28 de julho de 2011

capitães do mato, antes e agora

Foi ainda hoje, no final do meu almoço. Uma mendiga apareceu na praça de alimentação da galeria onde fica o restaurante onde fui comer e, ao passar por alguma mesa, tentava tocar no prato de alguém. Eu a vi fazer isso de perto, ela quase pegou um pastel de alguém que estava sentado numa mesa ao lado da minha. A mim pareceu óbvio que ela não estava, como se diz, em seu juízo perfeito: talvez tivesse alguma deficiência intelectual, ou a vida na rua a afetou, não tenho como saber. Enfim, não podia responder pelo que fazia.
Ocorre que, pouco tempo depois, eu a vi ser tirada a força do local. E quando digo local, é a galeria mesmo. Puxada pelo braço, empurrada - isso até que os dois sumissem da minha vista, depois, não sei. O autor do serviço sujo foi um desses seguranças engravatados. Como, aliás, não poderia ser diferente.
O caso me lembrou quase imediatamente estas cenas do recomendadíssimo filme Quanto Vale Ou É por Quilo.





Capitão-do-mato era uma função que ninguém queria, era malvista tanto pela elite, que a julgava necessária para a solução efetiva de ocorrências "indesejáveis" - como a fuga de escravos - , tanto pela população humilde, vítima de seus abusos e arbitrariedades e onde se recrutavam esses "profissionais". O capitão era o mais duro repressor direto da própria classe de origem.
E os seguranças de hoje? É o emprego que conseguem com a baixa escolaridade que, em geral, possuem. A elite precisa se sentir segura, ou, enquanto proprietária de um meio de produção, passar uma imagem de segurança para sua clientela. Aí entram em cena os guardas vestidos a rigor. O serviço pode ser visto como necessário, mas isso está longe de significar valorização da carreira. O segurança é o trabalhador explorado típico: baixos salários, treinamento insuficiente, vínculos empregatícios precários - afinal, "é tudo terceirizado". Mas foi o emprego que apareceu, e é preciso pôr comida na mesa...o negócio é fazer cara feia e sair marcando suspeitos com olhares e atitudes - sem parar para pensar que, sem a gravata e as credenciais da empresa, ele próprio seria tomado como suspeito em potencial por seus pares.
Estão incutidos nesse empregado os piores preconceitos que seus contratadores podem ter. Ele os reproduz com crueldade.
Para o capitão-do-mato que vi em ação hoje, a moradora de rua transtornada era menos que gente, merecendo, assim, ser colocada para fora, como o lixo que o restaurante produz. Se ele, segurança, se vê tão distinto daquele com quem mais se parece mais, a ponto de criminalizá-lo, o que não vai pensar sobre uma pessoa totalmente marginalizada, ele simplesmente não está preparado para lidar com alguém nessas condições. E talvez nem queira sabê-lo.
"Ah, mas você está exagerando nessa comparação, os seguranças podem ser uns brutos, mas pelo menos não matam." Não? Favor não se esquecer de uma certa ocorrência numa loja das Casas Bahia na periferia de São Paulo.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

jovens têm de sair de abrigos aos 18 anos

Essa reportagem me deixou chocado. Primeiro, tenha-se em mente que nem todo menor abandonado tem a chance de ser adotado, ou mesmo de ir para um abrigo. Agora, dou-me conta que nem mesmo a sorte de conseguir uma vaga num programa social público é garantia de que esses jovens consigam se estabelecer por si mesmos e escapem de ir parar...na rua, que essa era a intenção dede o início. Ao chegar a época de deixar os abrigos, eles enfrentam a insegurança de não saberem o que será de suas vidas após abandonarem a segurança do mundo que conhecem - situação que todo jovem em algum momento enfrenta, mas neste caso agravada pela situação de vulnerabilidade em que os abrigados se encontram.


Ler também: uma república na Vila Leopoldina recebe jovens saídos de abrigos sem cobrar aluguel e o depoimento de uma jovem moradora prestes a perder a vaga oferecida pela Prefeitura.

ah, desculpe, achávamos que fossem gays ou mendigos (Thiago Arruda)

Reproduzo, a seguir, um ótimo texto da autoria de Thiago Arruda, que aborda o hediondo caso do pai que foi atacado e teve uma orelha quase totalmente arrancada por agressores que acharam que ele e o filho eram homossexuais porque estavam abraçados. O flagrante desrespeito aos direitos de quem é considerado menos que humano encontra paralelo num outro ato covarde ocorrido catorze anos atrás, quando criminosos abjetos atearam fogo a um índio que dormia num ponto de ônibus porque (?) foi confundido com um mendigo.
Chama atenção a baixa repercussão do caso desta semana - um crime de motivações claramente homofóbicas - no noticiário da Rede Globo, que decidiu recentemente abortar da novela Insensato Coração uma série de cenas - algumas já gravadas - envolvendo o casal gay Eduardo e Hugo, sob o pretexto de não "exaltar" a homossexualidade nas novelas. Ora, a verdade é que a emissora não quis correr risco de perder audiência e anunciantes com o tema, num caso ainda mais flagrante de colocar negócios acima de gestos humanitários do que o da propaganda da Vivo, sobre o qual comentamos recentemente. O desserviço é tamanho que compromete até mesmo o jornalismo, como se a denúncia veemente de homofobia e demostrações de afeto fossem "levantar bandeira". Bem, para a alta cúpula Globo, aparentemente é; alguém graúdo deve ter decidido que na novela já se tinha ido longe demais e a ordem foi puxar o freio do antipreconceito em toda a programação.
Enfim, que a luta por direitos humanos para TODOS os seres humanos prossiga sem o apoio de grandes corporações, através, por exemplo, da internet, fonte do texto a seguir e meio onde todos, não somente uma minoria interessada em fazer mais dinheiro, podem expressar sua voz.



Ah, desculpe, achávamos que fossem gays ou mendigos.


Thiago Arruda

Ah, desculpe, foi um engano: achávamos que fosse um mendigo. Foi isso que disseram, no ano de 1997, em Brasília, os jovens de classe média que assassinaram o índio pataxó Galdino Jesus dos Santos. O caso ganhou ampla repercussão. O grupo simplesmente resolveu atear fogo ao corpo do homem que dormia sob o abrigo de uma parada de ônibus da cidade. Sadismo e ódio de classe lhes ofereceram motivos suficientes para isso.

Na última sexta-feira, 15 de julho de 2011, um novo engano. Pai e filho são agredidos brutalmente em São João da Boa Vista, cidade localizada no interior de São Paulo. Os agressores julgaram que eles eram gays; julgaram, e condenaram, mesmo diante da resposta negativa das vítimas. O pai teve parte da orelha cortada. Os autores não foram presos, são desconhecidos.

O que há de comum entre o gay e o mendigo? Algo que autoriza a violência. Algo que, aos olhos de alguns, pode justificá-la. O que o pequeno engano cometido pelos jovens brasilienses e pelo grupo de paulistas revela é que alguns – alguns muitos – são a ralé, uma sub-raça, um tipo inferior e que, portanto, devem apanhar, ou mesmo morrer. Para que aprendam, ou simplesmente para que seus carrascos possam dar vazão a toda a raiva que a mera existência desses vermes lhe provoca, ao poluírem o seu mundo. A essas criaturas, não resta humanidade, muito menos direitos.

É profundamente emblemático que um dos agressores paulistas tenha sido tão claro ao afirmar: “agora que liberou, vocês têm que dar beijinho”. Quantas vezes não escutamos um “não sou preconceituoso, apenas tenho o direito de não ver dois homens [ou duas mulheres] se agarrando” ou algo parecido? No fundo, trata-se da invenção absurda do direito de que o outro não faça, não seja, não exista. É o direito que o homofóbico proclama a si mesmo de que o outro se esconda, envergonhe-se de si e da forma como ama.

É daí que vem o seu direito de atacar. Cortar a orelha do “culpado”, aliás, é um castigo antigo. Em algumas civilizações, o ato significava que o acusado não ouvira bem, não compreendera bem a “voz da lei”. De fato, os que não se submetem a heteronormatividade esquivam-se de dar ouvidos ao imperativo hegemônico da sexualidade. Frequentemente, são castigados por isso; pelos homofóbicos que proclamam sua lei, proclamam o direito de que o outro não exista e tentam fazê-la cumprir a ferro e fogo. É assim que a relação se inverte: as vítimas são punidas; os vitimizadores punem e permanecem impunes, espalhando ódio por praças, igrejas...

O machismo nunca se deu bem, é verdade, com intensas demonstrações de carinho entre pai e filho. Logo, não é tão estranho que essa relação seja confundida com a relação entre namorados do mesmo sexo. No entanto, o mais grave é que há aqueles cuja revolta, declaradamente ou não, dirige-se contra a incapacidade dos agressores em diferenciar gays de pais e filhos – ou mendigos de não-mendigos (não que os índios sejam bem tratados, não o são). Algo como “que absurdo, esses loucos atacando cidadãos de bem”. Preserva-se, assim, um silêncio; no espaço não-pronunciado, persiste, firme, forte e bruta, a autorização da violência contra os seres sub-humanos que entopem os bancos das praças ou fazem sexo porcamente: se fossem mesmo, se não se tratasse de um engano, se fossem o que achavam que eram, não faria diferença. O problema permanece. Não se deveria a isso toda a repercussão na mídia que teve o caso da última sexta-feira? Quantos gays, lésbicas, travestis e transexuais são agredidos todos os dias no Brasil? Os relatos são constantes; a repercussão, bem menos intensa. O fato de a TV Globo ter, recentemente, censurado a participação de um casal gay na trama de uma das suas novelas é também revelador nesse sentido.

Cuidado. Você pode ser confundido com um gay, uma lésbica, ou um mendigo por aí. Portanto, comporte-se.

domingo, 3 de julho de 2011

sobre meninos, meninas e gibis

Não acompanho futebol desde 2007. Manter-se totalmente alheio ao assunto, porém, seria um feito irrealizável. Contou-me um passarinho - o Twitter, no caso - que a seleção feminina vem dando espetáculo após espetáculo na Copa do Mundo, com destaque para a jogadora Marta. Já o time masculno não saiu de um mísero empate em zero com a Venezuela (Venezuela!) num jogo, no mínimo, lamentável. E eu soube também que, perto dos milhões e milhões que movem a equipe masculina para onde ela vá e não importa o quão feio faça, Marta e suas intrépidas colegas contam com um orçamento proporcionalmente modesto.
Se futebol é tema assim tão inescapável, vejo que cada um pode dar pitaco, mesmo quem não faça questão de se inteirar muito a respeito. Como eu, por exemplo. Mas, para não fazer tão feio, meterei meu bedelho partindo de uma analogia com algo de que entendo mais - ainda que se trate também de modelo de entretenimento que eu não acompanhe com a regularidade de outrora.
Vejo o pessoal reclamando da seleção masculina e penso em gibis de super-heróis. Sim. Ocorre que, todo mês, religiosamente, deve haver ao menos uma revista nova dos X-Men, do Superman, do Homem-Aranha, do Batman, que seja. Tem de estar lá. Pelos fãs? Pela arte? Pela marca. Os prodigiosos justiceiros mascarados são franquias que precisam se manter vistas, faladas, consumidas. Por isso jamais acabarão. Mesmo que vejamos o Capitão América ou o Homem-Morcego morrerem, um novo personagem assumirá a respectiva identidade secreta e, tempos depois, esteja certo de que os originais estarão de volta com uma explicação mirabolante a reboque. Aliás, isso de fato ocorreu recentemente, com os mesmos heróis citados. É um osso de que os cães da Marvel e da DC não largam mão. Que saia (no mínimo) um gibi novo de nossos personagens mais famosos, ainda que pareça impossível manter a qualidade das histórias publicadas. Aliás, parece, não: acredite em mim, li quadrinho por muito tempo e é impossível sair história boa sempre. O que leva a apelações como mortes, retornos, clones, uniforme novo, corte de cabelo novo, poder novo, versão maligna...já vi de tudo um pouco. Coisas que podem levar meses, até anos, para serem resolvidas. Quando são resolvidas. Mas, ei, todo mês tem história nova do seu herói preferido, não importa quão boçal ou repetitiva ela soe.
Mas, enfim, de volta ao futebol. A seleção brasileira é uma marca. Uma senhora marca. Que o digam a Rede Globo, a Brahma, a Nike, o Ricardo Teixeira. Como os gibis, ela prima por resultados, e não necessariamente por qualidade, mas de uma maneira diferente. A seleção não deixa a desejar porque tem de jogar todo mês. É a forma como se montam as equipes. Via de regra, simplesmente são escolhidos os jogadores que mais estejam em maior destaque pelo futebol jogado em seus times. Entao espera-se que tais profissionais sejam capazes de se relacionar bem numa equipe, mesmo que, para a maioria dos torneios, não haja tempo hábil para tal. Porque eles estão ocupados nas equipes com que mantêm vínculo empregatício e, portanto, presos a uma série de compromissos ao longo de todo o ano. Por mais que todos gostem de acompanhar a "pátria de chuteiras", o negócio seleção brasileira não pode interferir de forma tão incisiva no negócio torneios de futebol no Brasil - e mesmo em outros países onde outros jogadores selecionáveis atuem. Ora, mas esses jogadores são bons, os melhores, e precisamos de uma seleção brasileira, os patrocinadores e as emissoras de TV - ou seria a emissora? - estão contando com isso. Ah, tem o torcedor também. Mas é o de menos, todos os grandes selecionados devem seguir essa mesma lógica burocrática e no fim o mais que temos são jogos e torneios idem; mal-aventurados os saudosos daquele futebol arte.
Talvez o futebol devesse perder essa característica tão "na cara" de empreendimento. Evidentemente, os cães das grandes entidades futebolísticas e associados também não largarão o osso. Mas há que achar um equilíbrio. As meninas estão aí mostrando que, no mundo do espetáculo esportivo, menos pode ser bem mais. Mais consistência, mais regularidade, mais futebol de verdade. E com os gibis se dá o mesmo: todo leitor se pega em algum momento em recordações sobre os "tempos mais simples" de outrora, com histórias menos ambiciosas, complexas em termos de bagagem cronológica e, sobretudo, melhores. Menos negócio, mais diversão, é o que o entretenimento deveria ser.
Mas não, mesmo na remota hipótese de o futebol seguisse essa receita, eu não voltaria a assistir aos jogos. É entretenimento, como qualquer outra coisa na TV, ou como quadrinhos. Cada um escolhe o que lhe agrada.