quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

estacionamento: a rua é de todos. logo, ela não é sua.

Já me manifestei em outros textos contra o estacionamento livre e generalizado em vias predominantemente residenciais. Talvez eu o tenha feito como quem simplesmente resmunga contra algo que não lhe agrada, sem a devida fundamentação, só para “ser chato”. Bem, tentarei corrigir minha falta agora, pois algumas coisas estão me ocorrendo sobre o assunto e, ainda que não configurem ideias novas, gostaria de fazer o registro escrito destas, se ninguém se incomoda. Eis-me, então.
Capture-se a cena: aquelas ruas relativamente calmas, que ainda exibem quase que somente casas em sua extensão e, por isso mesmo, apresentam um baixo fluxo de veículos. No entanto, essas mesmas ruas estão próximas – ou nem tanto – de ruas e avenidas em que predomina o uso comercial. Conclusão: tais vias calmas têm carros estacionados dos dois lados da rua, do começo ao fim, durante todo o dia. Aliás, alguns motoristas chegam tão logo o sol se levanta, estacionam ali mesmo, vão trabalhar e só tiram o carro à noitinha, quando termina a jornada. Sem problemas.
Essa situação deve se repetir pelos grandes centros do Brasil afora, mas ainda a considero tipicamente paulistana, porque São Paulo cresceu tresloucadamente primeiro, porque São Paulo é mais populosa, portanto tem mais veículos, porque mais gente opta por dirigir em São Paulo; enfim, escolha sua justificativa estrutural. Aliás, é curioso que, numa metrópole em que a preocupação com a segurança por parte de seus cidadãos seja tão evidente, os motoristas não se incomodem em deixar “o seu patrimônio” na rua por tanto tempo, sem problemas – a repetição foi intencional. O que explicaria essa aparente contradição? Talvez o simples fato de que “todo mundo faz” ofereça maior segurança aos motoristas: tanto carro parado na rua diminui bastante as chances de um carro específico ser roubado. Estatística bem elementar mesmo. Evitem-se as ruas mais mal afamadas ou mais suspeitas e pronto, resolvido o problema de estacionar de graça.
Outra linha de pensamento nos levaria a pensar que os estabelecimentos comerciais não oferecem vagas em suficiente número para tantos carros, ou que simplesmente não existam tantos estacionamentos assim. Mas então eu chequei o total estimado de estacionamentos em São Paulo nesta reportagem e acho, sinceramente, que cinco mil estacionamentos é um excelente número. E pode-se acusar o mercado de muitas coisas, menos de ser burro: certamente todos esses espaços disponíveis para você deixar seu carrinho estão onde estão pois há uma demanda que os justifiquem.
Mas eu falei lá em cima sobre “estacionar de graça”. E isso não foi à toa. É claro que as pessoas vão dizer que esses estacionamentos são caros. Esta outra reportagem que encontrei confirma isso. Lá para o final, porque o assunto principal da matéria é outro, afirma-se que São Paulo é a cidade brasileira mais cara para se estacionar. Citei o mercado lá em cima, peço licença para fazê-lo novamente: ora, se São Paulo tem mais carros circulando, parece óbvio que o valor cobrado para estacionar seja mais alto. Oferta e procura. Mas, via de regra, não somos liberais de verdade em terras brasileiras, só quando nos convém. Então o típico cidadão interessado somente no próprio nariz grita, o preço do estacionamento é abusivo!, É mais um entre tantos absurdos que as pessoas de bem enfrenta nesse país!
Bem, eu não sou liberal, nem quando me convém. Concordo que as taxas cobradas em alguns estacionamentos são caras demais. Mas então eu posso escolher. Não quero pagar, todo santo dia, um preço consideravelmente alto para deixar meu carro nesses estabelecimentos. Quais as alternativas?
Considero o comportamento de estacionar na rua todo dia completamente egoísta. E começo agora a dizer o porquê. Em princípio, a pessoa pode parar onde quiser, sim. É uma escolha. E escolher uma entre tantas alternativas é excluir todas as outras. Algumas opções a estacionar na rua são: a) procurar estacionamentos mais em conta; b) no caso de o local de trabalho não oferecer vagas, verificar, junto com outros funcionários, a possibilidade de estabelecer convênios com estacionamentos particulares, com preços especiais para o grupo; c) formar grupos de carona no trabalho, dividindo gastos com combustível e estacionamento; d) cogitar o uso do transporte público, eliminando de vez o problema do lugar para parar. As alternativas (b), (c) e (d), reparem, são ações que exigem pensar no coletivo, sendo que, enquanto as duas primeiras atingem um grupo restrito – os colegas de trabalho –, a última faz pensar na população da cidade como um todo: usando o transporte público, não apenas deixo meu carro em casa e evito os congestionamentos, sou um carro a menos e não ajudo a travar ainda mais o trânsito. 
Mas o “cidadão de bem”, aquele que, como já dissemos, não se importa com nada além de si mesmo, estaciona na rua de graça mesmo. E que não venha nenhum flanelinha para lhe encher a paciência. Afinal de contas, ele paga seus impostos, já tem de enfrentar um trânsito caótico todos os dias. E ainda precisa colocar combustível no carro: o preço da gasolina acabou de subir de novo, onde é que vamos parar? Vão me dizer que, com todos esses problemas, não tenho eu o direito de largar o meu carro onde eu quiser? A rua é pública!
“A rua é pública”...o que isso quer dizer? Que ela é de todos. Por quê? Porque todos pagam impostos. Eu pago impostos. Então, a rua é minha também, eu posso usá-la como bem entender. Pode mesmo? Duas colunas de carros imóveis e paralelas entre si durante dez, onze horas seguidas configuram um uso adequado de uma rua? De um bem público?
Eu entendo isso como mais uma forma de privatização do espaço público. Se um automóvel, ou muitos deles, tomam uma parte da rua por um número considerável de horas, ninguém mais pode usufruir desse espaço. Nem mesmo outros carros. Suponha que haja algum acidente nas proximidades. Essa rua vai ficar congestionada, pois parte do chamado leito carroçável estará impedido para o tráfego. Alguém que precise estacionar devido a um breve compromisso nas imediações, ou mesmo por uma emergência, será obrigado a andar mais até conseguir parar. Isso para não falar nos idosos, nos deficientes físicos ou em outras pessoas que, por suas particularidades, necessitam de uma flexibilidade maior quanto ao uso do automóvel particular em relação ao cidadão “de bem” médio.
Ainda posso apontar outro problema, mais relacionado à questão da poluição sonora. Se um dos alarmes desses veículos dispara de forma repentina e por qualquer motivo, não se sabe quando o ruído cessará, pois o motorista esta ausente e é o único capaz de desativar o mecanismo de emergência. Como se nossas áreas urbanas já não fossem barulhentas o suficiente. E o dono do automóvel, aquele que, em última análise, é responsável pelo incômodo, está totalmente alheio ao acontecido. Não lhe diz respeito. Ah, não?
Vejo as ruas repletas de carros estacionados cidade afora e imagino que estamos oferecendo um péssimo exemplo a quem nos suceder: nós, paulistanos, aos moradores de outras cidades; e nós, motoristas de agora, aos que estão começando a dirigir, ou àqueles que guiarão no futuro. Porque somos donos de um veículo, porque estamos em dia com nossos débitos, porque chegamos primeiro, arrogamo-nos direitos diferenciados em relação a...quem? O outro sequer existe. Cada um por si. Não sabemos (não queremos saber?) agir num espaço que é de todos. Não interagimos, não compartilhamos: simplesmente nos apossamos. Está aí a máxima “todo mundo faz” para legitimar nossos atos. Nós a usamos repetidamente, se necessário. Sem problemas.
Eu gostaria de crer que podemos ser melhores, que somos já capazes de pensar no outro. Mas situações como essa oferecem prova inequívoca de que ainda temos um longo caminho à frente. O individualismo impera, porque não pensamos nas consequências do que fazemos – a não ser nas consequências sobre os nossos bolsos. O texto acabou mais extenso do que o esperado, mas terá valido a pena se me fiz entender e, sobretudo, se forneci motivos que permitam repensar o uso de um espaço que é de todos.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Consciência Negra "versus" consciência humana

Vocês aí, compartilhando no Facebook aquela frase aparentemente tão esclarecida e “pra frentex” sobre um “dia da consciência humana”: não é somente a vocês que se dirigem estas linhas, mas peço-lhes atenção redobrada ao que tenho a dizer.
Gostaria que me esclarecessem em que ponto uma proclamada consciência humana exclui, por si só, o Dia da Consciência Negra. Ou qualquer data que faça alusão à luta por autoafirmação e respeito de grupos que foram vítimas de opressão ao longo da história pelo simples fato de serem o que são.
Eu imagino a boa intenção de quem leu inicialmente sobre consciência humana e pensou “sim, é isso mesmo!” Porque somos todos humanos, não é verdade? Somos todos iguais...certo?
É, deveríamos ser. Com efeito, nascemos todos iguais, Homo sapiens sapiens, as mesmas características que, do ponto de vista biológico, nos distinguem como espécie. Todos pertencentes à mesma espécie. Humanos, demasiado humanos, mesmo apesar de aparentes distinções externas. Cor da pele é uma delas, mera diferença superficial, incapaz de nos separar até mesmo entre raças, como já se tomou num passado não tão remoto.
E aí chegamos a um ponto de interesse: ao longo de nossa história, a pigmentação da pele foi sempre tomada pelo conjunto da sociedade como um insignificante detalhe diante da constatação de que somos todos humanos? Não foi, não é mesmo? Já citamos a ideia equivocada de raça, lembremo-nos também da escravidão a qual foi submetida à população africana, o Apartheid na África do Sul, a segregação institucionalizada nos Estados Unidos até a segunda metade do século vinte, entre outros exemplos.
Voltemos o olhar ao Brasil, pois o Dia da Consciência Negra é “coisa nossa”. Primeiro, a população negra foi escravizada. Houve focos de resistência, como o Quilombo de Palmares, liderado por Zumbi, cujo assassinato foi o motivo pelo qual foi escolhido o dia 20 de novembro para o feriado. No final do século dezenove, a escravidão caducou, precisava acabar e acabou, não tanto por “nobreza” da Princesa Isabel, mas porque era já defunta viva. E o negro? Quem se lembra do negro nos livros de história depois da abolição? Integrou-se de forma efetiva a uma sociedade que o recebeu de braços abertos? Viveu ele feliz para sempre?
Para sempre, entende-se, alcança os dias atuais. Vamos questionar, então, o tempo presente.
Os negros recebem os mesmos salários de brancos que realizam tarefas remuneradas similares? O rendimento médio dessas duas etnias, independentemente da função exercida, é similar?
Negros, mulatos e pardos – esse último termo me incomoda muito, aliás – constituem, juntos, a maioria da população brasileira. Devemos supor, então, que eles representam a maioria também em conjuntos representativos em nossa sociedade? São os negros e mestiços a maior parte dos alunos em universidades públicas? Em cargos de comando em empresas e instituições, sejam públicas ou privadas? O Supremo Tribunal Federal tem um ministro branco e o restante é negro?
Policiais tratam da mesma maneira brancos e negros em suas abordagens? Os jovens negros têm as mesmas probabilidades de morrerem de forma violenta que jovens brancos?
O princípio de igualdade explicitado anteriormente não é respeitado. Por conta disso, grupos minoritários vêm a público reclamar pelo direito à dignidade e a uma existência plena que lhes são simplesmente negados. O ser sujeito à discriminação não quer privilégio, pois ele ainda sequer é tratado como igual. O Dia da Consciência Negra, a causa indígena, o movimento LGBT, o dia da Visibilidade Trans* - todos eles existem para lembrar que somos todos humanos, sim.
Consciência humana de verdade é poder se colocar no lugar do outro, no lugar do oprimido, entender por que ele faz questão de explicitar sua diferença: é porque ele reclama uma igualdade que ele não vivencia.
Parem para pensar. Afinal, a própria palavra “consciência” remete à razão, ao ato de refletir determinadas ações ou ideias, sejam as nossas próprias, sejam aquelas cristalizadas em nossa sociedade.
Pois não é privilégio dos negros pensar sobre o porquê de um Dia da Consciência Negra. Fica o convite. A todos os humanos.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

protesto contra o aumento da passagem: o (pouco) que vi, o que penso

O Movimento Passe Livre organizou um protesto contra o aumento da passagem de ônibus aqui em São Paulo. Até onde consegui acompanhar, os manifestantes tinham fechado a 9 de Julho queimando três montes de lixo que obstruíam todas as pistas da avenida no sentido bairro (nossa, estou parecendo o boletim do trânsito). Os ônibus não conseguiam sair do Terminal Bandeira, onde marcavam presença alguns jovens que também protestavam, chamando o povo a participar, “vir contra o aumento”. Avenida fechada, a marcha começou, batucada, hinos, palavras de ordem, fogos de artifício. Acompanhando tudo, a polícia. A pé, em viaturas, em helicópteros. Fazendo pouco, olhando sério, dedo em riste. Parada, andando rápido, sem pressa...em formação. De guerra?Vendo tudo, de onde estivesse, inclusive do alto, jogando luzes contra os prédios. Tentando impor o medo. Fazendo o que polícia serve para fazer.
Saí do terminal, passei pela estação de metrô fechada. Andei. Andei por meia hora, consegui pegar o último ônibus que passou pelo ponto antes da marcha chegar, uma faixa “por um mundo sem catracas” trazida pelos que vinham à frente. Dois carros da polícia tinham acabado de fazer manobras assustadoras e encostado ali perto. Estávamos a poucos metros do túnel sob a avenida Paulista. Corri para pegar o ônibus, o motorista se afastou do local a toda velocidade. Daí não sei mais. Dentro do coletivo alguém falou em bombas de efeito moral atiradas pela polícia. Bem, polícia.
Os dias têm sido muito cansativos, só queria chegar logo em minha casa. Não pude. Mas digo com toda a calma e convicção de quem andou e pensou a respeito disso tudo: é bonito demais ver as pessoas na rua, andando juntas, para se fazer ouvir, para protestar contra uma situação que nos atinge a todos. Porque todo mundo quer chegar logo em casa. Inclusive quem está de ônibus. Então o protesto nos diz respeito a todos, sim. Então quem gritou e marchou – e certamente apanhou depois, certo, polícia? – contra o aumento só aparentemente está prejudicando o trabalhador que não tem nada a ver com a história. Porque, raios é sobre o trabalhador essa história, É ele quem pagará R$ 3,20 a cada viagem em ônibus lotados, mal conservados – por quantos coletivos quebrados passamos ao atravessar a cidade em um deles, esperando que o nosso não seja o próximo? E eu nem falei das ruas congestionadas. E eu nem falei que até nos corredores de ônibus tem congestionamento. O protesto é ruim? Atrapalha? E a vida, está boa?

Ver o povo marchar é bonito, faz pensar que as coisas poderiam ser diferentes. Imaginem todos indo para a rua, todos por um, o um que é todos. Porque a resposta para a pergunta lá de cima...nós não gostamos dela. E queremos lutar para mudar isso. Juntos. O que você vai fazer, Estado? Cadê sua polícia agora? Será que ela pode contra nós todos?...Mas é uma impressão que dura pouco. Porque não vai ser diferente. A gente tem essa dificuldade de entender as motivações do outro. Mesmo quando o que o outro faz é pensando...na gente. A gente pensa na gente, mas é outra gente. É a gente mesmo! A gente pensa em chegar logo em casa para descansar para amanhã para trabalhar e assim manter o emprego e assim ter dinheiro para comprar a roupa daquela marca que todo mundo está usando ou trocar de novo o celular por um mais “top”, com aquele aplicativo que é muito da hora. E esses baderneiros que apanhem mesmo. Fechando ruas. Atrapalhando a vida de todo mundo. Atentando contra o sagrado direito de ir e vir. Porque eu sou livre...trabalho e compro as coisas que eu quero. Esse trânsito e esse ônibus lotado? Ah, faz parte. O mundo não tem catracas...se liga...