terça-feira, 26 de outubro de 2010

a culpa é do pedestre

Segunda feira passada eu estava atravessando uma avenida próxima de casa para pegar o ônibus , na faixa de pedestres e o farol verde para mim. Foi quando quase fui atropelado. Era um trecho em linha reta, nada havia que pudesse obstruir a visão da motorista quase homicida de forma alguma. Passou o vermelho, e quase me passa por cima, porque quis.

Mais cedo, no mesmo dia, eu estava num outro ônibus e passei por uma mulher caída no chão que não compartilhou de minha sorte. Um motoqueiro a atingiu em cheio. Ela estava perto da faixa de pedestres e de um ponto de ônibus. Carros e coletivos mal se mexiam, ocasião em que, bem se sabe, os motociclistas cortam o corredor entre as pistas de rolagem a toda velocidade, buzinando contra quem se mova em seu caminho - ou passando por cima mesmo, ao que me pareceu com o episódio de hoje.

Nas duas ocorrências, usando o impessoal termo das autoridades, vozes se ergueram a mim responsabilizando o pedestre, e somente ele, pelo que houve. Na primeira - em termos cronológicos - um amigo meu; na outra, o motorista de um ônibus parado no farol enquanto eu ainda atravessava meio atordoado e meio emputecido veio me passar sermão. Ele não tinha nada com o caso e ainda veio me culpar por minha quase morte.

Por que é tão fácil responsabilizar o pedestre por algo de que ele é vítima?

Os automóveis se impuseram nas ruas de tal maneira que não faltam motoristas a se julgarem senhores absolutos delas. Aquele que se coloca no caminho desse tipo de condutor é visto com hostilidade e se torna vítima em potencial, mesmo que se trate de um inofensivo pedestre atravessando em local indicado e onde ele possui teórica preferência. Some-se o comportamento "carrocrata" vigente à frustração de ter um automóvel - que deveria garantir mobilidade e independência - e não conseguir andar devido aos congestionamentos e está completo o quadro: a "afronta" de fazer o motorista perder dois segundos da vida pode custar caro.

(O caso dos motociclistas: eles existem hoje aos tantos porque as ruas estão tomadas de carros. Eles trafegam, então, pelo espaço vago entre as vias entupidas. Talvez por isso aceitem ainda menos terem de ficar parados, ou mesmo reduzir a velocidade.)

Não digo que não haja pedestres que abusem da sorte, mas generalizar é uma tolice que não resiste a uma breve análise das condições de tráfego em nossas cidades para quem está a pé: calçadas em péssimo estado e escassez de pontos seguros para travessia, nos quais se espera às vezes por um longo período até o momento de seguir em segurança.

O tratamento desigual prossegue nas medidas estabelecidas para educação no trânsito. Repetimos a todo instante, olha o carro!, tão internalizados estão os avisos de que o pedestre deve aguardar sua vez. Mas aí o motorista se impõe e a vez nunca chega. Dificilmente alguém para o carro diante de uma faixa de pedestres não semaforizada. Ou mesmo reduz a velocidade em pontos de ônibus, de onde se supõe que pessoas possam vir a qualquer momento. Aí, acabam ocorrendo "acidentes" como o da semana passada.

Nem o verde para a travessia de pedestres é respeitado, ao menos não de imediato. Coisa corriqueira é algum engraçadinho furar o farol assim que ele fecha.

Como resultado, a pessoa andando por aí tem mais chance de se sentir acuada em qualquer circunstância, e não de bancar a valentona e "louca" como muitos podem achar.

Deslocar-se pela cidade a pé não deveria ser uma questão de vida ou morte. Somos pedestres muito antes de nos tornarmos motoristas. O uso do carro jamais abolirá o caminhar pelas ruas por completo. Regras para uma convivência pacífica devem ser seguidas por todos, não somente por aqueles que se encontram em situação de maior vulnerabilidade por não disporem de uma máquina potente e, sim, potencialmente letal. Condutores também devem se sentir responsáveis, em vez de se julgarem membros de uma hipotética casta superior que jamais erra.

domingo, 17 de outubro de 2010

delicadeza (maria rita kehl)

Reproduzindo, a seguir, o excelente texto Delicadeza, da psicanalista Maria Rita Kehl, ex-colunista do Estadão. (clique aqui para saber do lamentável motivo de sua demissão)

Aqui, a autora trata de um fenômeno que parece certo em São Paulo: o fim da chamada vida de bairro, em que os vizinhos se conhecem, pois o mercado imobiliário, sob as bênçãos da prefeitura, está construindo cada vez mais desses prédios de apartamentos que incentivam a uma vida cada vez mais impessoal dentro da cidade, que deveria ser o lugar de convívio por excelência.

Delicadeza

15 de maio de 2010 | 0h 00

MARIA RITA KEHL - O Estado de S.Paulo

Se eu fosse Deus e se eu existisse, executaria em São Paulo uma prosaica providência administrativa. Tombaria a cidade inteira pelos próximos dez anos: como está, fica. Não se derruba mais nada, não se constrói mais nada. Tratem de melhorar a cidade que já existe: monstruosa, desigual, mal planejada e mal cuidada. Se é para movimentar dinheiro, invistam-se nos espaços públicos: ruas, praças, jardins, calçadas, iluminação, centros de lazer, prevenção contra enchentes - tudo o que faz, de um amontoado de moradias, algo parecido com a magnífica invenção humana chamada cidade. Investir em urbanidade também dá retorno financeiro.

Vista assim do alto, do ponto de vista celeste, São Paulo mais parece uma cidade bombardeada. Imensas crateras em todos os bairros, quarteirões de casas derrubadas, populações pobres jogadas de lá pra cá à procura de lugar para criar novos campos de refugiados de onde serão expulsas pouco tempo depois. Inundações, trânsito bloqueado, gente desesperada presa dentro dos carros parados, gente enlouquecendo pela dificuldade de tocar o dia a dia. Gente que sente no corpo e na alma os efeitos de viver sob uma cúpula negra de poluição que só se vê de cima. Parece uma guerra, mas é só o capitalismo: bombando, enriquecendo alguns e empobrecendo o resto. Enquanto a cidade se torna infernal, se oferece aos que podem pagar o lenitivo de viver numa torre, bem acima do chão, de onde se finge escapar da realidade urbana. O uso novo-rico da palavra torre substituiu as obsoletas "edifício" e "prédio", além da simpática e infantil "arranha-céu". Nas histórias de fadas, a torre era o lugar onde se encarceravam as princesas. Privilégio em São Paulo é viver encerrado numa torre.

Mas como parar todos os negócios imobiliários da cidade? E a economia? E a geração de empregos? Digamos que, se eu fosse Deus, daria um jeito nisso. Se uma prefeitura rica como a nossa, em vez de se tornar cliente de um setor poderoso, investisse os impostos que recebe em outras atividades, em pouco tempo a cidade recuperaria sua pujança. Digamos que seja possível planejar um pouco a economia municipal. Só assim deixaríamos de ser reféns de quem já detém poder econômico. Dez anos são menos que uma fração de segundo pra quem vê o tempo do ponto de vista da eternidade. Mas quem sabe, tempo suficiente para que a cidade pudesse eleger uma nova prefeitura e uma câmara dos vereadores livres de compromissos com o poderoso Secovi, maior sindicato de comércio imobiliário da América Latina.

Mas - em nome de que Deus faria uma coisa dessas? Em nome de que impediria a cidade de, digamos - "crescer"? Não, Deus não precisaria ser socialista. Nem urbanista. Bastaria agir em nome de um valor que está presente em todas as perspectivas sagradas, religiosas ou simplesmente humanistas: em nome da delicadeza. Bastaria considerar que as cidades não existem para impressionar e oprimir as pessoas, mas para ampliar a esfera da liberdade, das possibilidades e daquilo que se costuma chamar de urbanidade.

Nesse ponto convido o leitor a trocar a vista aérea de São Paulo pelo ponto de vista pedestre. Basta descer um pouco do carro e passear a esmo pelas ruas. Se achar a proposta muito mixuruca, finja que é Baudelaire flanando por Paris no século 19, tentando captar o que sobrou da antiga cidade depois da monumental reforma executada por Haussmann a mando de Napoleão III. Ou finja que você é o João do Rio, cronista da capital brasileira reformada por Pereira Passos. A diferença, claro, é que essas duas enormes destruições/reconstruções urbanas foram planejadas visando a modernizar o espaço público, enquanto hoje a construção civil compra o poder público e faz literalmente o que quer em nome do interesse das pessoas, isto é, do mercado. Parece que o mercado é igual à soma das vontades das pessoas. Não é. O que chamamos mercado é um dispositivo formado por poucos, porém grandes interesses, que se impõe às pessoas de modo a determinar o que elas devem querer.

O que será de uma cidade que destrói todas as suas reservas de delicadeza, de graça, de modéstia? Caminhe um pouco pelas ruas de seu bairro em busca dos cantinhos que ainda não foram devastados por alguma obra grandiosa e brega. O que será de uma cidade sem varandas? Sem janelas dando para a rua - e o gato que espia pelo vidro de uma delas? O que será de nosso convívio diário numa cidade sem o pequeno comércio da rua, responsável pelo território coletivo onde as pessoas aos poucos se conhecem, se cumprimentam, conversam? Uma cidade sem zonas de familiaridade? O que será de uma cidade sem as vilas com casas antigas onde o pedestre entra sem passar por uma guarita e encontra um micro-oásis de sombra e silêncio? Sem a minúscula pracinha que sobrou numa esquina onde se esqueceram de construir outra coisa? Procure os lugares em que ainda seja possível o encontro entre o público e o privado, o íntimo e o estranho, o desafiante e o acolhedor. O que será de uma cidade que é pura arrogância, exibicionismo e eficiência? O que será de nós, moradores de uma cidade que despreza a vida urbana?