Já me manifestei em outros
textos contra o estacionamento livre e generalizado em vias predominantemente
residenciais. Talvez eu o tenha feito como quem simplesmente resmunga contra
algo que não lhe agrada, sem a devida fundamentação, só para “ser chato”. Bem,
tentarei corrigir minha falta agora, pois algumas coisas estão me ocorrendo
sobre o assunto e, ainda que não configurem ideias novas, gostaria de fazer o
registro escrito destas, se ninguém se incomoda. Eis-me, então.
Capture-se a cena: aquelas
ruas relativamente calmas, que ainda exibem quase que somente casas em sua
extensão e, por isso mesmo, apresentam um baixo fluxo de veículos. No entanto,
essas mesmas ruas estão próximas – ou nem tanto – de ruas e avenidas em que
predomina o uso comercial. Conclusão: tais vias calmas têm carros estacionados
dos dois lados da rua, do começo ao fim, durante todo o dia. Aliás, alguns
motoristas chegam tão logo o sol se levanta, estacionam ali mesmo, vão
trabalhar e só tiram o carro à noitinha, quando termina a jornada. Sem
problemas.
Essa situação deve se
repetir pelos grandes centros do Brasil afora, mas ainda a considero
tipicamente paulistana, porque São Paulo cresceu tresloucadamente primeiro,
porque São Paulo é mais populosa, portanto tem mais veículos, porque mais gente
opta por dirigir em São Paulo; enfim, escolha sua justificativa estrutural.
Aliás, é curioso que, numa metrópole em que a preocupação com a segurança por
parte de seus cidadãos seja tão evidente, os motoristas não se incomodem em
deixar “o seu patrimônio” na rua por tanto tempo, sem problemas – a repetição
foi intencional. O que explicaria essa aparente contradição? Talvez o simples
fato de que “todo mundo faz” ofereça maior segurança aos motoristas: tanto
carro parado na rua diminui bastante as chances de um carro específico ser
roubado. Estatística bem elementar mesmo. Evitem-se as ruas mais mal afamadas
ou mais suspeitas e pronto, resolvido o problema de estacionar de graça.
Outra linha de pensamento
nos levaria a pensar que os estabelecimentos comerciais não oferecem vagas em
suficiente número para tantos carros, ou que simplesmente não existam tantos
estacionamentos assim. Mas então eu chequei o total estimado de estacionamentos
em São Paulo nesta
reportagem e acho, sinceramente, que cinco mil estacionamentos é um
excelente número. E pode-se acusar o mercado de muitas coisas, menos de ser
burro: certamente todos esses espaços disponíveis para você deixar seu carrinho
estão onde estão pois há uma demanda que os justifiquem.
Mas eu falei lá em cima
sobre “estacionar de graça”. E isso não foi à toa. É claro que as pessoas vão
dizer que esses estacionamentos são caros. Esta
outra reportagem que encontrei confirma isso. Lá para o
final, porque o assunto principal da matéria é outro, afirma-se que São Paulo é
a cidade brasileira mais cara para se estacionar. Citei o mercado lá em cima,
peço licença para fazê-lo novamente: ora, se São Paulo tem mais carros
circulando, parece óbvio que o valor cobrado para estacionar seja mais alto.
Oferta e procura. Mas, via de regra, não somos liberais de verdade em terras
brasileiras, só quando nos convém. Então o típico cidadão interessado somente
no próprio nariz grita, o preço do estacionamento é abusivo!, É mais um entre
tantos absurdos que as pessoas de bem enfrenta nesse país!
Bem, eu não sou liberal, nem
quando me convém. Concordo que as taxas cobradas em alguns estacionamentos são
caras demais. Mas então eu posso escolher. Não quero pagar, todo santo dia, um
preço consideravelmente alto para deixar meu carro nesses estabelecimentos.
Quais as alternativas?
Considero o comportamento de
estacionar na rua todo dia completamente egoísta. E começo agora a dizer o
porquê. Em princípio, a pessoa pode parar onde quiser, sim. É uma escolha. E
escolher uma entre tantas alternativas é excluir todas as outras. Algumas
opções a estacionar na rua são: a) procurar estacionamentos mais em conta; b)
no caso de o local de trabalho não oferecer vagas, verificar, junto com outros
funcionários, a possibilidade de estabelecer convênios com estacionamentos
particulares, com preços especiais para o grupo; c) formar grupos de carona no
trabalho, dividindo gastos com combustível e estacionamento; d) cogitar o uso
do transporte público, eliminando de vez o problema do lugar para parar. As
alternativas (b), (c) e (d), reparem, são ações que exigem pensar no coletivo,
sendo que, enquanto as duas primeiras atingem um grupo restrito – os colegas de
trabalho –, a última faz pensar na população da cidade como um todo: usando o
transporte público, não apenas deixo meu carro em casa e evito os congestionamentos,
sou um carro a menos e não ajudo a travar ainda mais o trânsito.
Mas o “cidadão de bem”,
aquele que, como já dissemos, não se importa com nada além de si mesmo,
estaciona na rua de graça mesmo. E que não venha nenhum flanelinha para lhe
encher a paciência. Afinal de contas, ele paga seus impostos, já tem de
enfrentar um trânsito caótico todos os dias. E ainda precisa colocar
combustível no carro: o preço da gasolina acabou de subir de novo, onde é que
vamos parar? Vão me dizer que, com todos esses problemas, não tenho eu o
direito de largar o meu carro onde eu quiser? A rua é pública!
“A rua é pública”...o que
isso quer dizer? Que ela é de todos. Por quê? Porque todos pagam impostos. Eu
pago impostos. Então, a rua é minha também, eu posso usá-la como bem entender.
Pode mesmo? Duas colunas de carros imóveis e paralelas entre si durante dez,
onze horas seguidas configuram um uso adequado de uma rua? De um bem público?
Eu entendo isso como mais
uma forma de privatização do espaço público. Se um automóvel, ou muitos deles,
tomam uma parte da rua por um número considerável de horas, ninguém mais pode
usufruir desse espaço. Nem mesmo outros carros. Suponha que haja algum acidente
nas proximidades. Essa rua vai ficar congestionada, pois parte do chamado leito
carroçável estará impedido para o tráfego. Alguém que precise estacionar devido
a um breve compromisso nas imediações, ou mesmo por uma emergência, será
obrigado a andar mais até conseguir parar. Isso para não falar nos idosos, nos
deficientes físicos ou em outras pessoas que, por suas particularidades, necessitam
de uma flexibilidade maior quanto ao uso do automóvel particular em relação ao
cidadão “de bem” médio.
Ainda posso apontar outro
problema, mais relacionado à questão da poluição sonora. Se um dos alarmes
desses veículos dispara de forma repentina e por qualquer motivo, não se sabe
quando o ruído cessará, pois o motorista esta ausente e é o único capaz de
desativar o mecanismo de emergência. Como se nossas áreas urbanas já não fossem
barulhentas o suficiente. E o dono do automóvel, aquele que, em última análise,
é responsável pelo incômodo, está totalmente alheio ao acontecido. Não lhe diz
respeito. Ah, não?
Vejo as ruas repletas de
carros estacionados cidade afora e imagino que estamos oferecendo um péssimo
exemplo a quem nos suceder: nós, paulistanos, aos moradores de outras cidades;
e nós, motoristas de agora, aos que estão começando a dirigir, ou àqueles que
guiarão no futuro. Porque somos donos de um veículo, porque estamos em dia com
nossos débitos, porque chegamos primeiro, arrogamo-nos direitos diferenciados
em relação a...quem? O outro sequer existe. Cada um por si. Não sabemos (não
queremos saber?) agir num espaço que é de todos. Não interagimos, não compartilhamos:
simplesmente nos apossamos. Está aí a máxima “todo mundo faz” para legitimar
nossos atos. Nós a usamos repetidamente, se necessário. Sem problemas.
Eu gostaria de crer que
podemos ser melhores, que somos já capazes de pensar no outro. Mas situações
como essa oferecem prova inequívoca de que ainda temos um longo caminho à
frente. O individualismo impera, porque não pensamos nas consequências do que
fazemos – a não ser nas consequências sobre os nossos bolsos. O texto acabou
mais extenso do que o esperado, mas terá valido a pena se me fiz entender e,
sobretudo, se forneci motivos que permitam repensar o uso de um espaço que é de
todos.